quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Izabelle Valladares (Espelhos de tortura)

Espelhos de tortura








Ali do alto do forte, soberano sobre as águas, Joana observava a amplitude da natureza.
O mar de um azul cristalino mostrava no cintilar de pequenos brilhos prateados sobre as águas, um cardume que parecia uma onda de paetês lançada a mercê do vento.
A brisa tênue e fresca refrescava a tarde e provava a Joana como era bom estar ali, e viver ali.
Mas nem sempre fora assim.
Joana era jovem, não tinha vinte anos ainda, e a vida inteira se dedicara aos afazeres domésticos impostos pelo pai e pelo meio irmão.
A mãe morrera ao lhe dar a luz, em um parto de risco aos quarenta anos de idade, morte esta nunca perdoada por seu pai. O que sempre atormentara a vida de Joana.
Em sua casa não havia festa, nem qualquer tipo de comemoração, não havia música ou sorrisos, só o silêncio e a tristeza imperavam no casarão.
Morava na que um dia, fora a casa mais bonita da cidade em que viviam da colina a vista para o mar era pitoresca, e perfeita, e o som das ondas embalava o sono de Joana, na infância sofrida e abandonada.
Seu pai era um coronel reformado do exército brasileiro, que tivera os melhores meses de sua vida ao descobrir que seria pai de uma menina aos cinqüenta anos de idade, mas após uma gestação complicada, a felicidade transformou-se em tristeza e o que era vida, transformou-se em luto.
E a culpada da morte de Dona Eulália era uma só: Joana.
E a amargura da saudade transformara-se em depressão.
E nada mais fazia sentido.
Joana fora criada sem carinho, sem abraços, sem presentes, apenas como um soldado que recebia ordens.
Contra tudo e contra todos, fora proibida de estudar, de ir às missas, de ter amigos.
Quando a adolescência chegou e a coragem da idade lhe fez sair de casa uma noite para ir a uma festa da cidade, ás escondidas, a surra que recebeu dos dois, foi tão grande que parecia mais o desabafo de dois corações amargurados.
Á partir dali, Joana calou-se.
Nunca mais fora ouvido um só ruído de sua boca, nem de dor, nem de frustração, nem de cansaço, ela simplesmente calou-se.
Nos meses que se seguiram, uma forte epidemia de ratos tomou conta da cidade.
Seu pai odiava-os e passava o dia atirando nos ratos com sua espingarda. Uma senhora que morava em uma aldeia próxima, vendera ao coronel um veneno com a promessa que extinguiria os ratos que insistiam em habitar o forro do casarão.
Joana ouvia os dois resmungarem, e ouvia seu irmão afirmar que os ratos eram resultado do envelhecimento dos morcegos que perdiam suas asas. Joana nem se incomodava com as tolices que diziam, na verdade estava gostando da distração dos dois em caçá-los e deixá-la um pouco mais á vontade com sua solidão.
A única lembrança que Joana conseguiu guardar de sua mãe foi uma almofada em formato de coração, feita por ela mesma. Que Joana achara em um dos aposentos, pouco utilizados pelo pai.
Joana guardou-a como quem guardara um tesouro, escondendo-a a sete chaves em seu armário, porque seu pai e seu irmão, nunca permitiriam que ela tivesse qualquer objeto da mãe, afinal, a morte dela fora culpa dela, pelo menos era com esta sensação que Joana vivia o tempo todo.
Em uma noite tumultuada, aonde o ninho de ratos parecia estar em festa, Joana fora acordada pelos dois, para que entrasse no sótão escuro para colocar o veneno no foco dos ratos.
Joana, sonolenta, pensou em negar a situação, mas o simples pensamento de ter que falar em sua defesa, para ela já era penoso demais.
Preferiu manter seu silencio oportuno e calar-se aceitando mais uma vez a humilhação de ter que no meio da noite, resolver um problema que nem a incomodava.
E tamanho era seu sono, que Joana simplesmente distraiu-se e esqueceu a porta do seu quarto aberta.
Seu irmão, pela primeira vez em muitos anos entrou em seu quarto e viu a almofada que pertencera a Dona Eulália em cima da cama. Na hora nada falou, mas sabia que seu pai a puniria por esconder aquilo dele,nada dentro do casarão poderia acontecer sem seu consentimento .
Jades , como se chamava,o irmão, tinha dez anos há mais que Joana e era filho do primeiro casamento do coronel Bentes. Nunca fora atraente, e uma proeminência no queixo, fazia com que seu insucesso com as mulheres fosse ainda maior. Não havia visitas, não havia namoradas, não havia passeios, apenas umas noites de bebedeiras em algum prostíbulo da cidade.
Na noite seguinte á barulheira feita pelos ratos no sótão, passos foram ouvidos no corredor da casa durante á madrugada.
Joana pode perceber quando, alguém parou em frente á sua porta.
A sombra de Jades em seu quarto assustou-a de imediato, quase a fazendo quebrar seu silencio.
As mãos de Jades começaram acariciando seus pés e foram subindo em direção as suas coxas.
Em um impulso de defesa, Joana levantou-se e acendeu a luz.
Jades com um olhar de quem como Joana, não sabia o que era amor, apontou para a almofada em cima da cama.
_ O coronel não vai gostar de saber disso!
Então era aquilo! Jades queria trocar carinhos com Joana em troca do seu segredo.
Joana temia o irmão, mas temia ainda mais a reação do pai, ela em sua consciência mais profunda sentia-se culpada pela morte da mãe. E a última surra que levara, deixara-a com um joelho com seqüelas
E foi assim que o purgatório em que Joana vivera a vida inteira transformou- se em inferno.
Nas noites que se seguiram, uma após a outra, as visitas de jades eram constantes.
Começou com carinhos em suas pernas e seios, partindo logo em seguida para a consumação do fato.
Os estupros eram freqüentes e múltiplos em algumas noites.
Nas noites em que Jades saía para beber, as coisas tornavam-se ainda piores, vivenciando seus fetiches, Jades esbofeteava sua face, chegando até mesmo a cuspir nela em algumas das vezes e Joana sentia-se ainda mais humilhada por ter que passar por tudo aquilo.
Alguns meses depois o inesperado, mas lógico aconteceu.
Os enjôos matinais e o aumento das mamas fizeram com que a lavadeira, única criada que tinha acesso á casa, percebe-se a gravidade da situação de Joana.
Já havia percebido as manchas de sangue e de sêmem em suas roupas de cama e em suas roupas de dormir, não sabia, mas imaginava o que estava acontecendo ali.
A princípio desconfiou do pai e pensou em denunciá-lo, mas a fama de opressor do coronel a fizeram mudar de idéia e não se meter nos assuntos da família.
Tentou aproximar-se de Joana e ajudá-la, com o cuidado de não ser vista em sua companhia.
Tamanho susto tomou ao descobrir que Joana falava. Há anos trabalhava ali e nunca tinha ouvido um ruído sequer daquela moça.
E Joana chorou e colocou toda sua angústia para fora, todo seu sofrimento e toda sua tristeza.
Contou-lhe do motivo banal da permissão dos estupros e de toda humilhação que vinha passando.
A humilde lavadeira era astuciosa, e resolveu ajudar Joana, que sequer imaginava que um filho dela com seu irmão estava a caminho.
Como o andaço de ratos na cidade era grande, não foi difícil colocar o plano em prática.
Colocaram no sótão infestado de ratos, tecidos que podiam absorver e abrigar as fezes e urina de seus algozes.
Com o cuidado de não se infectarem, começaram a contaminar os objetos pessoais de uso diário do coronel e de Jades, passando os tecidos nos garfos, copos e pratos da casa.
Como era de se esperar, em muito pouco tempo a leptospirose se instalou no organismo dos dois, levando-os rapidamente é morte.
No período da doença dos dois, Joana experimentou um sentimento de alívio e vingança.
Quando os dois morreram, Joana pela primeira vez saboreou o gostinho da vitória associado ao sentimento de paz.
A Lavadeira tornara-se sua melhor amiga, e no dia do seu parto, esteve ao seu lado o tempo inteiro, como uma mãe cuida de uma filha.
Sua filha chamou-se Eulália, em homenagem á avó, e para a felicidade de Joana, a menina em nada lembrava Jades.
Nas primeiras semanas após o parto, um sentimento de tristeza e depressão foi crescendo em seu interior e tomando cota de sua alma e de seu coração.
Andara pelos corredores e lembrava-se dos horrores vividos ali.
Olhava Eulália e lembrava-se de Jades com suas mãos grotescas invadindo sua intimidade e arrancando sua inocência.
Olhava a casa minuciosamente arrumada e lembrava-se dos anos em que era comandada pelo coronel com mãos de ferro, que passava o dedo nos móveis ao chegar a casa, para ter a certeza que o serviço imposto á Joana havia sido cumprido.
E em uma dessas tardes de imensa angústia Joana deixara Eulália em casa com a lavadeira e dirigira-se até o forte. Precisava ver algo realmente bonito e vivo, precisava respirar a brisa do mar, sentir o vento em seus cabelos, enfim, sentir-se bem.
Mas ali naquele momento, Joana só sentiu o que não queria.
Aprendera desde o nascimento a ser oprimida e agora não sabia ser livre.
Não sabia viver sem receber ordens, não sabia caminhar sozinha, não sabia ser mãe.
As lágrimas molharam um tímido sorriso em Joana, pela simples aceitação de entender que não viveu para ser livre.
Ao olhar as pedras emergirem do mar com o vai e vem da maré, Joana não pensou duas vezes, em 4 segundos de queda, entendeu o que o coronel lhe dissera a vida toda, não era para ter nascido.
A morte de Joana foi o espelho de sua vida, triste, só e silenciosa.
A lavadeira que tomava conta de Eulália levou-a para longe do casarão e de toda aquela triste história. Criando-a em um ambiente humilde, mas libertando-a do mal que acometera sua família.
Até hoje o casarão amaldiçoado continua lá no alto da colina, alguns ignorantes temem se aproximar, achando que o mal que ali existiu era obra do sobrenatural, não sabendo eles que o maior de todos os males está no mundo real, na hierarquia imposta pela mente humana.
Ao trancar o casarão, a lavadeira fez uma breve oração, e em nenhum momento se arrependeu de ter arquitetado o plano.
Pegou a chave e lançou á ao mar, como se pudesse trancafiar pra sempre esta triste história, naquele espelho de águas que serviram de cenário para o fim de uma família, e que muitas das vezes refletem o aspecto das almas em movimentos de calmaria e revolta, dia após dia, dando-nos a impressão de olhar o seu horizonte e achar que não tem fim.


 Izabelle Valladares

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